CRÔNICA: Eu desisto

CRÔNICA: Eu desisto

“De fato, o futebol brasileiro tem tudo, menos o seu psicanalista. Cuida-se da integridade das canelas, mas ninguém se lembra de preservar a saúde interior, o delicadíssimo equilíbrio emocional do jogador. E, no entanto, vamos e venhamos: — já é tempo de atribuir-se ao craque uma alma, que talvez seja precária, talvez perecível, mas que é incontestável.”

Nelson Rodrigues, em 1956, em uma crônica chamada “Freud no Futebol” escreveu o trecho acima e, 64 anos depois, ouso dizer que quase ninguém ainda se lembra do equilíbrio emocional do jogador e que, a cada ano que passa ele se torna mais ainda uma “peça”, um “ativo”, uma “marca” que precisa cumprir várias demandas alheias para manter a “engrenagem” do futebol funcionando.

As palavras entre aspas citadas acima são as comumente ditas pela imprensa e por muitos que trabalham no futebol, palavras essas que utilizamos no dia a dia para nos referirmos a objetos, reduzindo um ser humano que é complexo a um simples corpo que precisa ser melhorado, que precisa “performar”, que precisa dar resultados, excluindo o próprio sujeito dessa equação, impedindo que ele entre em campo ao seu favor.

Há uma semana, o jogador alemão André Schurrle encerrou sua carreira aos 29 anos. Pra quem não se lembrou só pelo nome, ele foi o autor dos últimos dois gols do 7×1 e quem assistiu Mario Gotze no gol do título mundial de 2014 e em sua declaração após o anúncio, ele afirma que pensava em se aposentar desde 2015, aos 25 anos.

“Eu desisto… não preciso mais de aplausos”.

“Você precisa desempenhar um papel para sobreviver nesse mundo… Vulnerabilidade e fraquezas não devem existir em momento algum.”

Ao esbarrar-se nas falas de Schurrle, a primeira coisa que coisa que você deve ter pensado é: “Mas como assim, ele ganha milhões!”. Sinto informar-lhe de maneira educada, que você é bobo e, provavelmente, por ser bobo, passa o dia a procura de aplausos, likes, curioso com o que as pessoas acham sobre você ou sobre o que você deve fazer, comer ou em quem votar e, com isso, evita a si próprio.

Também, por ser bobo e se preocupar com o que os outros estão pensando sobre você, demanda, faz exigências e projeções do, para e no outro, no que ele deve fazer, comer ou em quem votar, porque você sabe o que é melhor pro outro e quais os 5 passos pra qualquer coisa, como ser feliz, emagrecer ou salvar o país e, com isso, também, só está se evitando.

Alerta de spoiler: ninguém é capaz de salvar o país, ou você acha que alguém não já o teria feito nos últimos 50, 100 ou 200 anos?

O ser humano é complexo e, por ser complexo, é incontrolável, instável e imprevisível, e não existem passos, receitas prontas, nem solução pra seres tão caóticos quanto a gente (e tudo bem). O que nos resta? Fazer como o Schurrle e, por mais difícil que seja, bancar-se a si próprio, recusando os papéis oferecidos independentemente dos “milhões” que estejam em jogo e assumindo a vulnerabilidade de nossa natureza.

Como diria o “Coach de Fracassos”, pare de tentar e comece a desistir!

Por Lucas Rafael de Castro Bettone, Bacharel em Ciências do Esporte e Especialização em Futsal: Teoria e Metodologia do Treinamento

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