Os “cidadãos anônimos” que constroem a história de Mirandópolis

Os “cidadãos anônimos” que constroem a história de Mirandópolis

Foto: Arquivo Pessoal

A geração que chega agora aos 80 anos é nascida nos anos 1940. Naquela época, em nossa região, as cidades estavam nascendo e certamente não tinham muito a oferecer em termos de educação, cultura e lazer. O futebol, a missa católica e os bailes de sanfona eram possivelmente as opções de diversão para os jovens nos fins de semana. As eventuais festas religiosas e o circo, inclusive com shows musicais, completavam as opções culturais para as famílias.

Com tudo a ser construído, trabalho duro não faltava, inclusive para as crianças. A educação era sacrificada, com mulheres e homens, quando muito, chegando ao quarto ano da escola. Minha mãe, Aparecida, por exemplo, fez apenas o primeiro ano. Em famílias numerosas, filhos mais velhos faziam sacrifícios ainda maiores. Meu pai, Valdemar, o mais velho da casa, aprendeu em casa a assinar o próprio nome e a fazer contas.

Muitas famílias moravam nas colônias das fazendas, e algumas delas conseguiam comprar seu primeiro sítio pagando a prazo, com o lucro da própria produção. Sendo o filho mais velho, meu pai contava que era responsável por rachar muitas dúzias de lascas de aroeira para que meu avô comprasse o primeiro sitio dele. A colheita de 800 sacos de amendoim em período chuvoso, que foram secos no chão de terra batida da própria casa, foi outra empreitada que meu pai contava.

O casamento muitas vezes obrigava os novos casais a trabalhar em propriedades de terceiros como parceiro (meeiro), já que os pequenos sítios das famílias não permitiam sustentar as novas famílias de todos os filhos. Meu pai deixou o bairro “km 70” e minha mãe o “km 50” para, recém-casados, morarem no “Córrego do Boi”.

Eu nasci em agosto de 1970, menos de um ano após a minha irmã mais velha, Sueli, ter falecido aos nove meses por problemas respiratórios. Aliás, a perda de filhos recém-nascidos ou com menos de um ano infelizmente era algo muito mais comum que hoje em dia. Para ajudar a superar a perda familiar, em 1971 passamos a morar no km 50, passando meu pai a ser um dos meeiros no sítio do avô materno, o português Manoel Martins. Já estando grávida da próxima filha, Lucimeire, que nasceria em janeiro de 1972, minha mãe poderia contar com a ajuda da minha avó, Helena. O irmão mais novo, Vagner, só chegaria dez anos após, em 1982, quando a mãe já havia vencido as dores do reumatismo.

Em 2019, a família se reuniu para celebração de 50 anos de matrimonio de Valdemar e Aparecida. Foto: Arquivo Pessoal

A dedicação à lavoura era a forma mais comum de prover a família. Com o declínio do café nos anos 80, alternativas tiveram que ser buscadas, como ampliação não só da pecuária de corte e leite, mas também da produção de queijo, do cultivo de milho, algodão, feijão e cebola, usando tecnologias mais modernas (nem sempre saudáveis para as pessoas e o meio ambiente), e, ainda, a ampliação/introdução do cultivo de frutas e hortaliças. Nesse contexto, meus pais diversificaram sua lavoura e, no início dos anos 90, o Seu Valdemar acabou se tornando também feirante, o que complementava a renda da família.

De tudo que meu pai e outros lutadores anônimos como ele conquistaram ao longo de suas vidas de trabalho, sacrifícios e algum lazer, creio que o mais relevante foi a formação de famílias em que os filhos tiveram oportunidades que eles jamais imaginaram para si. Com sua dedicação, meus pais propiciaram a minha formação como engenheiro agrônomo (convertido depois em professor em Campos-RJ), da minha irmã como professora (em Três Lagoas) e de meu irmão como empreendedor do comércio em Mirandópolis.

No último dia 4 de fevereiro, completou-se um ano da ausência física de meu pai, Valdemar Marciano, que nos deixou aos 81 anos. Sua presença em minha memória, no entanto, é diária, praticamente constante. Tenho certeza que esse sentimento não é só meu, mas é também de minha mãe, meus irmãos e de muitos familiares e amigos que puderam desfrutar do seu convívio.

Muitos de sua geração estão partindo, deixando um vazio em suas famílias, mas certamente deixando alicerces bem firmes para os que ficam. Suas vidas, muitas vezes quase anônimas, como a de meu pai, merecem ser muito celebradas. Que sigamos tentando honrar o que eles representaram para cada um de nós.

Por Claudio Roberto Marciano, que é filho de Valdemar (In Memoriam) e Aparecida. Ele nasceu em Mirandópolis no ano de 1970, sendo que atualmente reside em Campos, no Rio de Janeiro.


                       
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